Folha de São Paulo: Livro relata abusos sexuais contra presos da ditadura
KENNEDY ALENCAR
da Folha de S.Paulo, em Brasília
"Foram intermináveis dias de Sodoma. Me pisaram, cuspiram, me despedaçaram em mil cacos. Me violentaram nos meus cantos mais íntimos. Foi um tempo sem sorrisos. Um tempo de esgares, de gritos sufocados, um grito no escuro", escreveu Maria Auxiliadora Lara Barcellos no texto de memórias no exílio na Alemanha.
A tortura foi uma prática comum da ditadura militar, afirma o livro "Direito à Memória e à Verdade", documento oficial do governo federal que pela primeira vez acusa integrantes da ditadura de tortura e mortes. Abusos sexuais atingiram homens e mulheres, mas estas sofreram mais. Maria Auxiliadora não foi morta por agentes nem é uma desaparecida. Ela se atirou nos trilhos de trem numa estação em Berlim, em 1º de junho de 1976.
O caso dela foi deferido pela Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos com base na lei 10.875 de 2004, que ampliou os critérios de aceitação de indenização previstos na lei 9.140 de 1995. A comissão passou a contemplar as mortes que ocorreram em anos posteriores às torturas quando comprovado que aconteceram em decorrência de seqüelas.
Em 21 de novembro de 1969, Maria Auxiliadora foi presa com dois companheiros da VAR-Palmares, organização clandestina que incorporou outros dois grupos, a VPR e o Colina. A VAR realizou uma das operações mais conhecidas da guerrilha: em 1969, roubou o cofre de Ana Capriglione, amante do ex-governador Adhemar de Barros, no qual havia mais de US$ 2,5 milhões.
Mineira e com 24 anos, Maria Auxiliadora foi torturada pela polícia do Exército no Rio, com dois colegas. Ela seria enviada para o Chile em janeiro de 1971 na companhia de outros 69 presos políticos, em troca da libertação do embaixador suíço, Giovanni Enrico Bucher. O embaixador fora seqüestrado um mês antes pela VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) de Carlos Lamarca.
Quando depôs na Justiça Militar do Rio, em 27 de maio de 1970, Maria Auxiliadora disse: "Foram tirando aos poucos a sua roupa, que um policial, entre palavras de baixo calão, proferidos por outros, ficou à sua frente como se mantivesse relações sexuais com a declarante, ao tempo em que tocava seu corpo, que esta prática perdurou por duas horas, o policial profanava seus seios e usando uma tesoura fazia como se fosse seccioná-los".
Ainda segundo o depoimento dela, seus dois colegas, Antonio Roberto Espinoza e Chael Charles Schreier, "saíram da sala (...) visivelmente ensanguentados, inclusive no pênis, na orelha e ostentando corte na cabeça". Chael morreria em menos de 24 horas. Quase sete anos depois, Maria Auxiliadora se suicidaria no exterior.
PCB e ALN
Apesar de não ter aderido à luta armada, o PCB teve dirigentes seus mortos pela ditadura militar. Segundo o livro da comissão de mortos e desaparecidos, foi uma decisão estratégica da ditadura: "Tratava-se, pois, de neutralizar o PCB antes da volta à democracia".
Combatente na Guerra Civil Espanhola e integrante da Resistência Francesa na Segunda Guerra, o cearense David Capistrano da Costa, 61, tentava voltar ao Brasil clandestinamente em 1974. Desapareceu em 16 de março daquele ano. Preso, foi levado para a chamada "Casa da Morte", em Petrópolis. Em entrevista à revista "Veja", o ex-sargento Marival Dias Chavez diz que David foi "executado e esquartejado, tendo seus restos mortais sido ensacados e jogados num rio próximo", tese que consta do livro editado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos.
Militante da Ação Libertadora Nacional, a paulista Ana Rosa Kucinski Silva, 32, desapareceu em 22 de abril de 1974. Segundo o livro da comissão, ela estava na companhia do marido, Wilson Silva, "nas proximidades da praça da República", em São Paulo. Segundo um ex-agente da repressão, o casal teria sido levado para a mesma casa em Petrópolis. O ex-agente diz crer que os corpos dos dois "foram despedaçados".
O livro relata que o jornalista e professor da USP Bernardo Kucinski, irmão de Ana Rosa, contou à revista "Veja" que "a família foi extorquida em 25 mil dólares em troca de informações que, ao final, se mostraram inteiramente falsas".
Araguaia e VPR
Integrante da Guerrilha do Araguaia, ação de combate rural do PC do B no norte do antigo Estado de Goiás (hoje Tocantins), Miguel Pereira dos Santos desapareceu entre 20 e 27 de setembro de 1972. O livro da comissão não conseguiu precisar a data, mas uma das poucas pessoas da guerrilha que sobreviveram, Regilena Carvalho Leão de Aquino, disse à Câmara Municipal de São Paulo que "a mão direita de Miguel Pereira foi cortada para identificação de suas impressões pelos órgãos de segurança", relata o livro. Pernambucano, ele tinha então 29 anos.
O paulista Jaime Petit da Silva, 28, era irmão de dois outros guerrilheiros mortos no Araguaia, Lúcio e Maria Lúcia. Depoimento de um morador da região que foi guia do Exército e um relatório do Ministério Público Federal de São Paulo afirmam que Jaime teve a cabeça decepada e enterrada. A decapitação foi um procedimento adotado pelos militares em relação a outros guerrilheiros do Araguaia e, em alguns casos, a cabeça era levada por militares. O livro da comissão registra diversos episódios desse tipo.
Em 1974, a guerrilha do Araguaia, já bastante debilitada pela ação dos militares, foi exterminada. Com base em depoimentos do coronel da Aeronáutica Pedro Cabral, o livro da comissão de mortos e desaparecidos diz que corpos de guerrilheiros mortos no Araguaia foram retirados do local meses após enterrados e levados para a serra das Andorinhas (PA), onde teriam sido queimados juntos numa grande fogueira.
Os restos mortais de duas guerrilheiras do PC do B, a carioca Telma Regina Cordeiro Corrêa e paulista Suely Yumiko Komaiana, também teriam sido transportados para esse local. Telma morreu aos 27. Suely desapareceu entre janeiro e setembro de 1974. Podia ter 26 ou 27 anos. O coronel Cabral diz que ele próprio pilotou helicóptero levando restos mortais de guerrilheiros para a serra das Andorinhas, a cerca de 100 km da região da guerrilha.
O paulista Massafumi Yoshinaga, que se suicidou em 1976 aos 27 anos, é um exemplo da guerra de contra-informação do período. Seis anos antes, depoimento dele negando suas convicções de esquerda e repudiando as organizações clandestinas foi levado ao ar.
O livro diz que muitos dos casos de arrependimento foram obtidos por meio de tortura. Não sabe precisar, porém, se isso aconteceu com Yoshinaga. Segundo o livro, ele "teria se apresentado voluntariamente aos órgãos de segurança em meados de 1970, depois de passar alguns meses sem contato com a VPR, enfrentando dificuldades de sobrevivência". A comissão deferiu o pedido dos familiares por unanimidade, sob o argumento de que ele "não conseguiu mais trabalhar ou estudar e a família continuou sendo vítima de vigilância e perseguições". Na terceira tentativa de suicídio, enforcou-se com "a mangueira de plástico do chuveiro, em sua casa".
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